sábado, junio 20, 2009

Bolero

Esperança é o que não me falta. Me falta é um pouco de ânimo.

- Vou sair pra tomar um ar, caminhar por aí, pelas pedras, até o mar.

Parece uma música. Um sambinha antigo. Não tem mar nessa cidade.

- Quer que eu traga alguma coisa da rua?

- Ânimo.

- Trago um Marlboro maço. E whisky.

Ela sentou em uma das cadeiras de almofadas verde musgo que ficavam na cozinha, como se estivesse cega, tateou até encontrar alguns pincéis e rabiscou nos azulejos formas abstratas: decepção. Ela acendeu um cigarro e tragou leve, a fumaça cinza azulada dançou no ar, como a bailarina que ela nunca foi. Se eu pudesse escolher não seria só forma, não seria só objeto, não seria só desejo. Eu seria a Ana Cristina César, eu me apaixonaria pela Ana Cristina César. Queria dobrar o corpo todo, em posição fetal até que a cabeça se encontrasse no meio de suas pernas, o máximo que pudesse, sempre gostou de fazer isso, desde criança, se sentia protegida, se sente protegida. Depois pensou que se fizesse isso, e ele chegasse no momento em que ela tivesse fazendo isso, se sentiria meio ridícula. Então apagou o cigarro e molhou as samambaias, deu comida aos gatos, esquentou um pouco de água pra fazer um chá, desligou o fogão porque lembrou que ele traria whisky, e hoje é sábado, que se dane, eu vou ficar bêbada e vou dançar bolero de calcinha no meio da calçada abraçada à garrafa e cantando: besamebesamemuchocomosefosselanochedaultimavez. Com seu péssimo sotaque de falsa argentina até vomitar toda sua vida imbecil e monótona.

Deu um pulo, foi até a gaveta do armário, encostou o cano do revólver na cabeça e disparou no exato momento em que ele girou a maçaneta trazendo o cigarro e o whisky. Sua vida passando na frente dos seus olhos como um filme. Um péssimo filme. Não daria nem dez minutos.

Mas ela lembrou que eles nunca tiveram uma arma em casa. E mesmo que tivessem, ela não se mataria. Esperança tem de sobra, o que lhe falta é ânimo. E é preciso muito ânimo pra se matar.

Deu um beijo no seu marido, buscou um copo com gelo, acendeu mais um cigarro.

- Eu queria ter sido bailarina, sabia?

- Eu queria ter sido bombeiro, ou policial, ou malabarista.

Sentaram no sofá e viram televisão até à hora de dormir.

- Nunca gostei muito de bolero mesmo.

jueves, junio 18, 2009

Todos os que quiseres.

Vinho tinto combina com chocolate, e com cigarros.
Tudo combina com cigarros.
Pelo menos pra mim.
...
Eu tenho uma folha de manjericão no bolso, tem um cheiro ótimo.
Defuma a casa com ela, usa também arruda, guiné, espada de são jorge, aquelas pimentinhas e faltam duas.
Eu nunca lembro dessas últimas duas. O melhor chá que existe é o de jasmim.
De dama-da-noite. Cestrum noctorum. Cestrum leucocarpum, Cestrum parqui. Dama-da-noite, flor-da-noite, jasmim-da-noite, rainha-da-noite, coirana, coerana, jasmim-verde.
Ficou como naquele teu texto, o que fala sobre lavanda.
Fala sobre paixão.
Qual paixão?
Não sobre uma paixão. Sobre paixão, paixões, no plural. Todos meus textos falam sobre paixões, no plural.
A Paixão, com P. é um dos melhores temas.
Alguns falam sobre amor. Esses são pra ti.
Acontece que não tenho mais tempo, já não posso sonhar.
Acontece que não temos mais tempo, eu vou pintar um quadro pra te dar.
Eu vou usar o azul mais bonito.
Você não é o que eu sempre sonhei.
Você é o que eu sempre quis.
Não é projeção, é só e é o bastante.
É o que eu sempre quis.
Eu prometi um poema, mas a poesia nem sempre está nos versos.
...
acredite
esse é pra ti
e só pra ti,
todos os que quiseres.

martes, junio 16, 2009

Velho Elefante

Se eu tivesse alguém pra conversar não teria tanto medo.

Foi o que ele pensou quando fechou as vidraças e decidiu se preparar pra dormir, ficou só de cueca, calçou as pantufas e foi buscar um copo de água, deixou do lado da cama, superstição. Desligou a televisão e fechou os olhos, como um filme, tudo o que conseguia lembrar de sua vida, sua antiga vida, no tempo em que tinha, aquilo o que chamamos de vida, passou pela sua cabeça, como um filme, controlou a respiração, bem devagar, respiração contada, esparsa, tentando relaxar. Não conseguiu relaxar, virava de um lado pro outro, acendia cigarros nas brasas dos cigarros que iam se apagando, se espantou ao ver que só tinha mais dois, teria que sair amanhã, o que seria um sacrifício.
Na verdade nada demais aconteceria pela rua, nada demais aconteceu nos últimos anos, nada demais aconteceu a sua vida toda. Por isso decidira não procurar mais os amigos, não investir mais em nenhuma relação, não ter ninguém com quem conversar. Como os elefantes que quando ficam velhos se afastam do bando pra morrer só. Como os elefantes velhos. Mas não pra morrer, pra enlouquecer só. Era só isso que queria: enlouquecer só, e só enlouquecer.