martes, octubre 20, 2009

na cadência bonita do samba.

dia. interno. um bar com mesas e cadeiras vermelhas de ferro. iluminação fraca. uma mesa de sinuca em algum canto. nenhuma jukebox. pouca gente. quase ninguém além do dono e ele.

Ele sentado na última mesa, a mais perto do balcão, um cigarro na boca, duas bitucas no cinzeiro, uma garrafa de cerveja na frente, um olhar vazio. Camisa azul claro, calça cinza escuro, sapato preto, chapéu panamá, lágrimas de nossa senhora no pescoço.
- Mais uma, fazendo o favor.

Queria ter feito tanta coisa, queria ter sido famoso, queria ter feito algo útil, queria ter composto melhor, queria ter amado mais, queria ter escrito mais, queria ter tido menos mágoas, menos ciúmes, menos raiva, ter perdoado mais, ter sido mais alegre, mais simpático, menos ranzinza, ter visto mais filmes, ter lido mais, ter tido algum filho, um animal de estimação, ter comprado um trombone, ter aprendido a tocar trombone, ser útil pra alguém. Pelo menos uma vez.

- Traz um cigarro daqueles de dois, Seu Geraldo.

É meio-dia, o prato de hoje é: arroz, feijão, polenta frita, salada de maionese, frango assado, alface e tomate. Como não sente fome nenhuma pede mais uma cerveja, olha pra toda aquela gente comendo apressada pra dar tempo de um pequeno descanso antes de voltar ao trabalho. Se trabalhasse de forma regular teria uma aposentadoria regular. Ouviu a frase exatamente sete vezes na vida: Mãe, Pai, Primeira Namorada, Segunda Namorada, Primeira Esposa, Segunda Esposa (duas vezes). Nunca quis trabalhar de forma regular. Vida de artista nunca é regular. Dois salários mínimos não dão pra quase nada além do aluguel, conta de luz, conta de água, telefone e alimentação. Por isso e por ser um cliente fiel por mais de vinte anos, pode pendurar sua conta no bar.
- Seu Geraldo, me lembra que hoje eu vou acertar.
- Não tem precisão...

dia. interno. um bar com mesas e cadeiras vermelhas de ferro. iluminação fraca. uma mesa de sinuca em algum canto. nenhuma jukebox. pouca gente. quase ninguém além do dono e ele.

São duas da tarde e de cerveja já foram seis. Duas sinucas que jogou com o Seu Geraldo e perdeu. As duas dá um real, mas normalmente Seu Geraldo não cobra e ele não paga. Dona Eva ta de cama, gripe. Nessa idade é um horror. Já faz três dias. Febre alta, muita tosse, muco. Seu Geraldo precisa ir ao hospital fazer exame. Tem pressão alta, três remédios por dia, gasta muito dinheiro nisso. Não pode deixar o bar sozinho.
- Eu cuido, meu velho, amigo é pra isso. Quando voltar me lembra que hoje eu vou acertar.
- Não tem precisão...
Ele cuida. Cuida do bar até as seis quando Seu Geraldo volta. Novo que é uma beleza, cantando um velho samba pro velho amigo na mesa do bar.
- Foram mais duas cervejas, Seu Geraldo.
- Essas nem precisa anotar, é o pagamento do favor.

dia. interno. uma sala pequena com um sofá verde velho e duas cadeiras de madeira e palha. uma lâmpada amarelada. duas pessoas sentadas. uma em frente a outra.

- Quando eu morrer quero ser enterrado com uma camisa azul claro, calça cinza escuro, sapato preto, chapéu panamá e lágrimas de nossa senhora no pescoço.

início da noite. interno. um bar com mesas e cadeiras vermelhas de ferro. iluminação fraca. uma mesa de sinuca em algum canto. nenhuma jukebox. pouca gente. quase ninguém além do dono e ele.

Um travesti de batom vermelho borrado e dois rapazes entram no bar. Ela senta no colo de um deles. Pedem uma cerveja. Ela ri alto e canta com voz esganiçada:

- ...quero morrer, numa batucada de bamba, na cadência bonita do samba
.
Seu Geraldo acompanha batucando em uma caixinha de fósforo. Seu Geraldo gosta muito de samba antigo. Principalmente samba antigo e triste. Ele também gosta, mas não tem tanta vontade de cantar assim, só acompanha com o pé direito. Acende um cigarro. O travesti pede fogo. Pisca e diz que cobra barato. Ele não gosta disso, acha decadente, deprimente e uma vergonha que alguém tenha que se submeter a isso pra sobreviver. Mas acha lindo que ela ainda possa rir e cantar. Mesmo em um bar com luz fraca e sem nenhuma elegância. Mesmo acompanhada de dois mulatos com braço forte e voz firme que a pagam em cerveja. Ou não pagam nada. Ou são só amigos e isso é um pré-julgamento dele. Nem no fim da vida estamos livres dos pré-julgamentos. É o que ele pensa enquanto a noite começa.

fim da noite. interno. um bar com mesas e cadeiras vermelhas de ferro. iluminação fraca. uma mesa de sinuca em algum canto. nenhuma jukebox. pouca gente. quase ninguém além do dono e ele.

Entra um rapaz com cavaquinho, um com um violão, um com um pandeiro e um com um tamborim. Hoje tem roda de samba e mocotó. Tem rodada de cachaça artesanal por conta da casa e tem felicidade que não é temporária por mais que só dure até o dia amanhecer.
O travesti pede pra tocar aquela da cadência bonita do samba. Seu Geraldo acompanha batucando em uma caixinha de fósforo. Ele só acompanha com o pé direito.

- Traz mais uma, fazendo o favor. E manda uma pra cada um do bar.

O pessoal bate palma e agradece, convida ele pra chegar mais perto, pegar um instrumento.

Queria ter comprado um trombone. Queria ter aprendido a tocar trombone.

Ele agradece, mas prefere ficar sentado ali de longe pra apreciar melhor a nova geração. Acende o último cigarro da noite.

meia noite. interno. um bar com mesas e cadeiras vermelhas de ferro. iluminação fraca. uma mesa de sinuca em algum canto. nenhuma jukebox. pouca gente. quase ninguém além do dono e ele.

Os rapazes que estavam com o travesti vão jogar uma partida de sinuca. O samba corre e é emcaçapada a primeira bolinha. O pandeiro dança o cavaquinho chora o violão geme e o jogo continua. O tamborim avisa o samba breca e a bola oito entra na caçapa.
Ele apaga o último cigarro da noite.
Seu Geraldo tem um ataque cardíaco fulminante atrás do balcão.
Não foi hoje que ele acertou a conta. Só se ouve a batida grave e seca do surdo que não existiu.